
Pernambuco. Palavra singular de 10 letras em que todas diferem entre si. Não me lembro se conheci outra parecida, tão adequada e capaz de criar códigos a partir dela. Alan Turing por certo ficaria animado com tal utilidade críptica da palavra nas brincadeiras de criança ávida por desbravar mistérios da natureza, ou até mesmo na adolescência, em que as cartas de amor a seus pretendentes, não podiam sob nenhuma hipótese serem descobertas. A revelação de sua preferência afetiva por homens lhe custou a vida e fora punido terrivelmente pelas leis dos homens que ele ajudou a salvar.
Paraíba, Jacaraú. Em 13 de janeiro de 1920 nascia Antônio Farias. Homem que viveu sua vida dedicada aos valores tradicionais de sua região e época: Família, Igreja e Ofício. E esses três pilares, de certa forma, se consolidam em sua história em diversos causos contados por seus filhos, parentes e amigos, e produziram em Seu Antônio uma enorme vocação, a qual considero a mais nobre de seu caráter: a caridade.
Rio Grande do Norte. O menos lembrado dos estados ocupados pelo domínio holandês, foi onde viveu Antônio Farias boa parte de seus anos, da infância aos derradeiros dias. Precisamente no município de Montanhas, ainda distrito de Pedro Velho, quando ele se mudou para lá. E foi lá que eu o conheci, convivi e aprendi a fina arte de sua existência.
Fez do comércio seu ofício. Inicialmente vendia grãos, sabão, miudezas em geral, utilitários diversos típicos da região e época. Não peguei esse período em vida, só de histórias. Não sei dos grãos que vendia, só das sacas pesadas que eram carregadas por seus filhos. Um em especial, que me contou diversas vezes dessa atividade lúdico-pedagógica, meu pai.
Para mim, criança, meu avô era farmacêutico. Pois tinha uma farmácia. Farmácia São Braz, Aqui Tudo É Mais Barato. Era uma extensão da casa de meus avós, na fachada da rua são João, rua que dava na igreja. Homem prático e metódico, seu Antônio. Saía de casa para o trabalho, do trabalho para igreja, da igreja de volta para casa. Por vezes ao longo dos anos, o vi fazendo as mesmas coisas. Diabético, comia sempre uma mesma papa de aveia com adoçante no café e jantar. Vestia uma mesma camisa de linho branca, punha um mesmo chapéu preto. Na televisão, a redevida rezava o terço sob os olhares ternos de sua esposa Autinha.
Tra-tra-tra-tra-tra. Abria a porta de rolo pesada bem cedo. Fechava todos os dias ao início da noite. Das memórias auditivas que tenho dele, um terço rezado com sotaque do interior paulista (“agora e na hora de nossa morrrrte, amém”) e uma porta de rolo abrindo e fechando são das que mais me trazem a sua presença. No seu último dia em vida, abriu a porta de rolo pela manhã, fechou-a ao fim do dia. Comeu sua papa de aveia, banhou, deitou e partiu.
Após sua partida, chovia na farmácia gentes de toda cidade que vinham agradecer ou relatar alguma ajuda dada pelo homem. Havia os que recebiam quantias mensais, remédios, contas abonadas do seu caderno de anotação, pagamento de feira, colégio, custos adicionais. Até o padre veio solenemente agradecer à família pelos valores exultosos dados para a reforma da igreja. Vivia pelo trabalho. E do trabalho, à caridade.
Mas, veja só, há de ter método até para a caridade. Não poderia ser feita desmedidamente. Assim como não queria, não podia e nem deveria receber holofotes para tal. Comerciante visa o lucro, isso aprendemos desde sempre, afinal. E é aí que entra o Pernambuco na história.
P = 0
E = 1
R = 2
N = 3
A = 4
M = 5
B = 6
U = 7
C = 8
O = 9
Eis o código que Turing jamais ousou traduzir.
Exemplo: Caso o remédio tivesse a venda por 12 reais, teria escrito na caixa 12 reais. Se alguém o pedisse algum desconto, ele precisava saber quanto o custou aquela caixa, para poder aplicar o desconto. E aí que entra a criptografia do comerciante. Se a caixa custara R$ 5,80 estaria lá escrito “M,CP”. Ele vendia o remédio por 8 reais, sabia de sua margem na hora de impor o desconto. E só ele sabia, afinal.
O cliente satisfeito jamais entendia o motivo de ter na caixa da Cibalena as letras NPP. Ou REU no envelope de Sonrisal. Tampouco entenderia se o explicassem. Mas sabia que, pelo menos na hora da dor, se o bolso apertasse, havia alguém em quem podia confiar.
Crônica Por: Ciro Guilherme
04 de fevereiro de 2025
Pernambuco – ciro guilherme
O Montanhas em Ação parabeniza o excelente texto produzido pelo Neto do Saudoso Antonio Farias e se junta aos demais cidadãos que reconhece este grande comerciante de Montanhas e que leva o seu nome até hoje, representado pela família Farias de Oliveira.

Obrigado Bira pelo registro e compartilhamento. Importante sempre resgatar e contar a memória dos ilustres e queridos da nossa cidade.
O que você escreveu ficará marcado eternamente, uma linguagem direto objetiva e que fundamenta muito a qualidade do trabalho de seu Antonio Farias. Conheci e convivi na minha infanto/adolescência. Seu Avó mostru-se um grande homem e cidadão humanitário. Parabéns pela sua matéria!